Há coisas na vida que não deveríamos ver… Há coisas na vida que não deveríamos saber. E, principalmente, há coisas na vida que não deveriam acontecer!

Este é um daqueles casos que, de tão tristes e cruéis, nos faz pensar e repensar sobre nossas próprias vidas, sobre Deus; sobre nossa aparente impotência diante do destino e das agruras imputadas a nossos semelhantes e, às vezes, a nós mesmos…

Apresentamos a V.Exa. o senhor Onésio. Um homem comum, de carne e osso, como nós o somos. Mas, ao contrário de nós, Onésio vê a vida por outro ângulo. Ele a vê RENTE AO CHÃO! Esse mesmo chão que serve para caminharmos. Esse chão onde várias pessoas mal-educadas cospem e jogam seus lixos. O chão por onde rodam nossos carros…

E foi há mais de duas décadas que (permita-me, Exa., falar na primeira pessoa) conheci Onésio. Foi num momento imaturo de minha história que minha vida cruzou com a do senhor Onésio … e nunca mais me esqueci dele!

Eu tinha completado meus 19 anos de idade e dirigia de forma insegura e orgulhosa meu primeiro carro. Parei num semáforo do cruzamento da Avenida Silva Lobo com a Avenida Barão Homem de Melo, quando percebi uma presença perto da porta de meu carro. A princípio, pensei que fosse uma criança, mas nem uma criança seria tão pequena. Abaixei o vidro para poder olhar pra fora e… conheci Onésio: um homem que caminhava com suas mãos e se arrastava, rente ao chão, devido à imperfeição total de suas pernas.

Na vida cotidiana, estamos acostumados a ver de tudo. E talvez este seja um dos grandes problemas da humanidade: acostumar-se a ver o que não deveria ter visto! 

Alguns momentos marcaram minha vida de forma irreversível. Conhecer Onésio certamente foi um dos mais importantes, pois, no auge de minha futilidade pós-adolescência e sentindo-me o maioral por dirigir um carro seminovo, conheci um homem, como eu, que se arrastava. Um homem que via a vida por um ângulo do qual nenhum ser humano deveria olhar.

Mas, foi exatamente ao olhar para Onésio que senti uma coisa mágica: apesar de se arrastar, apesar de ter quase a cor da poeira de asfalto e de sua sujeira, ele sorriu para mim com seus olhos. E isso me marcou para o resto de minha vida!

Tirei uma pequena nota que havia na minha carteira (uma das poucas que tinham sobrado da compra do carro, ainda financiado) e tentei entregar. Como seus braços também têm limitações, ele deixou a nota cair, sendo soprada pelo vento. Sem pensar, puxei o freio de mão, desliguei o carro e fui atrás da nota, apesar do forte buzinaço atrás de mim, pois o sinal já estava aberto. Dizem que a definição de “fração de segundos” é o tempo decorrente entre a abertura do sinal de trânsito e o acionamento da buzina por parte dos idiotas que estão atrás.

Fato é que entreguei a nota, voltei para o meu carro sob os fortes “elogios” dos impacientes motoristas “cidadãos” e segui em frente, olhando para trás, vendo os “carros” passarem a milímetros de Onésio, como se ele nada fosse. 

Atualmente, conhecedor da prescrição do crime de injúria (ainda que em sua forma continuada), confesso que, abusando da “coragem” da juventude, acenei amigavelmente usando meu DEDO MÉDIO para os motoristas que quase atropelaram Onésio e me ultrapassavam gritando coisas não divulgáveis e elogios à minha mãe!

Há poucos meses, decorridos mais de vinte anos daquele dia, encontrei Onésio novamente. E, novamente, rente ao chão!

Há um provérbio chinês que diz que um homem nunca passa duas vezes pelo mesmo rio, pois ambos – homem e rio – mudam.

O semáforo era outro e eu não estava dentro de meu carro. Eu estava feliz, com minha esposa e filho, admirando uma casa antiga que eu havia adquirido para ser uma filial de meu escritório de advocacia. Não estava mais orgulhoso, nem inseguro… “Apenas” feliz! Nisso, percebi que mudei também!

Mas, quando ia entrar na casa pela primeira vez, na qualidade de proprietário, olhei para o sinal situado na esquina da Rua Araguari com Avenida Amazonas e… vi Onésio novamente. 

Eu e Onésio mudamos! Adquiri uma grande qualidade nesses anos todos: não sentir orgulho de meus defeitos. Onésio mudou também. Quando o vi há décadas, ele tinha um sorriso vivo, contagiante. Apesar de toda a sua “sorte”, Onésio mostrava sua alma viva dentro de um corpo limitado. Agora, seu sorriso, ainda que presente, estava cansado. E ele parecia ter perdido algo que não se pode retirar de um ser humano: a esperança.

Não sei se a vida de Onésio daria um livro. As mesmas pessoas que quase o atropelaram na época e que, ainda hoje, o ignoram, não gostam de ler livros que não tenham um final feliz. 

Peço licença a V.Exa. para voltar a falar na primeira pessoa do plural, para ser coerente com a suposta humildade do profissional, que nada seria sem uma equipe fantástica que ajudou a construir nosso nome, ao longo de mais de 20 anos de advocacia.

Não sei ainda quais os limites do que poderemos fazer por Onésio. Não sei se as pessoas considerariam que Onésio pode ter um final feliz, com nosso limitado conceito de felicidade.

Patrocinamos vários exames médicos para avaliar a real condição dele. Como Onésio mostra sequelas neurológicas, tem dificuldade em falar. Sua condição clínica parece ser proveniente de um misto de paralisia infantil com possíveis abusos e agressões sofridos por parte de seu pai, quadro agravado por décadas de vida como mendigo. 

Onésio mora em uma casa alugada com a ajuda dos vizinhos. Recebe parco benefício, ainda reduzido por causa de mais um desses absurdos produzidos por este museu de horrores em que se transformou nossa Previdência. Pede esmolas nos sinais para tentar complementar sua subsistência mínima. E quase não consegue mais fazê-lo.

Onésio não tem mais o “vigor” de duas décadas atrás. Hoje, somente consegue pedir esmolas duas vezes por semana, dias em que é gentilmente transportado por alguns anjos urbanos, que guiam os ônibus próximos à “casa” de Onésio; e de seus respectivos cobradores, que o carregam carinhosamente no colo, deixando-o nos sinais onde esmola.

Conseguimos, com a tutela do Estado, uma cadeira de rodas motorizada e adaptada para Onésio, bem como onerosos exames neurológicos complementares. Isso graças à decisão proferida por uma juíza corajosa, que não teve a hipocrisia de chamar o acesso judicial à saúde de “indústria da liminar”, como o fazem aqueles que têm completos planos médicos e salários que, se não garantem a saúde (essa garantia é de Deus), garantem um acesso digno a ela, o que é negado a Onésio.

A cadeira ainda não foi “entregue” pelo Estado. Onésio ainda vai ter de ver o mundo rente ao chão por algum tempo. 

Não podemos dar a Onésio o clássico final feliz que as estórias e contos nos ensinaram quando éramos crianças. Onésio dificilmente levantará e andará como uma pessoa normal. Talvez ele conheça uma companheira e vivam felizes para sempre, mas sua solidão atual faz dos motoristas de bom coração (desculpe se dei ênfase apenas aos canalhas, em detrimento das centenas de pessoas boas que passaram por Onésio) e de seus vizinhos, motoristas e cobradores – seus únicos companheiros. 

Onésio disse-me que inúmeras pessoas já prometeram para ele a cadeira motorizada e mundos e fundos. Mas depois, por algum motivo estranho, elas esquecem! Se Deus me permitir, não vamos nos esquecer de Onésio, pois, após conhecê-lo, não vemos como isso seja possível. 

Neste sentido, Exa., escusando-nos pela extensão de nossas palavras, pedimos que V.Exa. conceda a Onésio a dignidade mínima de um cidadão, usando tanto os princípios que regem nossa Constituição, como os princípios morais que regem a decência de uma sociedade que não deveria permitir a ocorrência de casos como esse.

O Estado deveria ter garantido a Onésio o direito de tomar vacinas que evitassem a suposta paralisia infantil. Deveria ter impedido que seu pai o agredisse e ter protegido sua infância. Deveria ter lhe dado instrução e oportunidade de alocar-se em um mercado de trabalho, para não ter de pedir esmolas. Décadas depois, nada mudou… 

Casos como o de Onésio continuam acontecendo e ainda vão acontecer por muitos e muitos anos. Se o Estado não consegue evitar, que possa minimamente corrigir. Pois, sim, é dever do Judiciário intervir diante da omissão dos demais Poderes. Numa sociedade que se intitula democrática e livre, os juízes e suas canetas são o último bastião que nos separa da anarquia e da bestialidade. 

Que Deus abençoe sua mente, seu coração e sua caneta! 

André Mansur Brandão

Advogado

 

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