Nesta crônica, somos convidados a encarar uma pergunta desconfortável: será que a nossa obsessão por normalidade é, na verdade, uma forma de controlar o outro?
A cena que vou descrever a seguir foi retirada do filme REFÚGIO DO MEDO que, desde já, deixo indicado para vocês, pois vale muito a pena assistir.
No final do século XIX, o jovem médico Edward Newgate chega ao isolado asilo Stonehearst, com o intuito de estudar métodos modernos de tratamento para doenças mentais. Lá, ele é recebido de forma estranhamente cordial pelo enigmático Dr. Lamb, diretor da instituição, e passa a se interessar pela bela e perturbada paciente Eliza Graves.
À medida que Edward se envolve com os pacientes e os métodos nada ortodoxos da instituição, começa a desconfiar de que algo está terrivelmente errado.
Preso um jogo de aparências, loucura e manipulação, Edward precisa decidir em quem confiar e como escapar – se é que ainda há sanidade a ser salva.
Mas, este não é o ponto mais importante do filme. A cena que vou descrever acontece quando, em uma das visitas que o jovem psiquiatra fazia, na presença do carismático Dr. Lamb, às “celas” onde ficavam trancafiados alguns dos internos mais graves, a dupla se depara com um homem muito rico, porém completamente louco, que não só acreditava que era um cavalo, como agia exatamente com um.
Na penumbra úmida de sua cela estreita, onde o silêncio era cortado apenas pelo som ritmado dos cascos imaginários, o homem galopava. Despido das amarras do que chamamos de realidade, relinchava com convicção, o olhar vívido, o peito arfante.
Não havia dúvida em sua mente: ele era um cavalo. E trotava alegremente por sua cela, até que o diretor se aproxima, enfia sua mão para dentro da cela e coloca na boca do homem alguns torrões de açúcar – um mimo extremamente apreciado por equinos nos Estados Unidos e em alguns países da Europa.
O paciente sai trotando, ainda mais radiante, pela cela afora.
O jovem médico observava aquela dinâmica com inquietação. Aquilo lhe parecia um retrato claro da insanidade. Voltando-se ao diretor da instituição – um homem calmo, de fala firme e olhar desconcertantemente sereno – perguntou:
— O senhor é uma lenda mundial na psiquiatria, quem sou eu para o questionar. Mas… não seria prejudicial alimentar essa esquizofrenia do paciente, ao invés de tentar trazê-lo à realidade?
O diretor sorriu, como quem já ouvira aquela pergunta muitas vezes:
— Por que eu tentaria transformar um cavalo feliz em um ser humano miserável?
O preço de ser normal
A resposta do diretor não é apenas uma provocação filosófica, é um tapa silencioso em nossa convicção arrogante de que existe um único caminho certo, uma única versão aceitável da realidade. A escolha entre um “cavalo feliz” e um “homem miserável” nos obriga a confrontar o quanto da nossa empatia está condicionada à conformidade.
O diretor, ao não tentar “curar” o interno, rompe com a obsessão clínica de enquadrar todos dentro de padrões considerados normais. Ele não vê a esquizofrenia como algo que precisa ser imediatamente combatido, mas como um estado que, mesmo fora dos trilhos da razão, pode conter alegria, dignidade e até liberdade.
Isso nos leva a uma questão desconfortável: será que muitas vezes tentamos mudar o outro não por amor, mas por desconforto? Será que o desejo de “ajudar” alguém que vive diferente é, na verdade, um desejo de alívio próprio, de ver o mundo mais previsível, mais semelhante a nós?
Quantas vezes rotulamos de “doido”, “fora da realidade” ou “errado” alguém que, apesar de viver à sua maneira, está em paz consigo mesmo?
E o mais grave: quando tentamos “curar” o que não está doente – apenas diferente – não estamos, talvez, matando um tipo raro de felicidade?
O diretor sabia: normalidade é uma prisão, quando não é escolhida. E não há loucura mais triste do que arrancar de alguém o único delírio que o faz sorrir.
Claro que a questão vai dividir opiniões, pois nascemos humanos, não cavalos. Mas é uma importante reflexão que, inclusive, podemos expandir para outros conceitos tão dominados por falsos paradigmas e convenções.
Seriam exemplos a moralidade, estética, padrões de beleza, normas de comportamento social e, claro, o próprio conceito de sucesso?
Seja como for, em uma sociedade onde se premia o “ter” em detrimento do “ser”, somos obrigados, frequentemente, a aceitar padrões externos sobre como devemos agir, como devemos nos vestir, o que devemos ouvir; enfim, sobre como devemos ser.
E você, quer ser normal ou prefere ser um cavalo feliz?
André Mansur Brandão
Advogado e Escritor